O MISTÉRIO DA PROVÍNCIA DE BEAUMONT
Conta-se, em Beaumont, a história de um garoto que no auge de seus nove anos de idade, brincalhão, esperto e sempre muito curioso,
desaparecera subitamente na segunda semana em que ele e sua família mudaram-se
para a nova casa. Nova para eles que habitavam-na pela primeira vez, pois a
casa era velha desde muito tempo. Algumas partes da parede caíam aos pedaços
com a primeira ventania que soprasse por aqueles lados, a parede interior e exterior,
com sua cor branco amarelado carregando um aspecto assombroso quando a luz do
luar incidia sobre ela, já estava toda descascada e repará-la era, infelizmente,
inviável àquela família que, por razões financeiras, mudaram-se para lá.
Era uma casa enorme com inúmeros aposentos. A sala era de uma imensidão
que o mais suave dos passos causavam ruídos que ecoavam pelo teto, lustre e
escadaria, sendo capaz até mesmo de alcançar os ouvidos de quem estivesse no
andar superior. Os quartos tinham os tetos altíssimos, cada qual com um lustre
brilhante em seu centro e janelas que hoje não mais se encontram no mercado.
Infelizmente a casa não possuía luz elétrica, fazendo com que a antessala, o
vestíbulo, os quartos, cozinhas, banheiros e demais aposentos fossem iluminados
com grossas e pesadas velas em seus candelabros cor de prata.
Os Dardeau não conheciam ninguém. Sua nova residência situava-se
distante das demais casas da cidade, que contavam em torno de oitocentas. Cerca
de duzentos metros para trás de seu quintal era esplêndido a vista da imensidão
de um lago que ali se encontrava, que para felicidade da esposa, que era
genuína amante do inverno, e infelicidade do pai que o odiava mais que qualquer
outra coisa, trazia um brisa acentuadamente gelada para dentro do saguão,
percorrendo o playground fazendo com que suas belas árvores, esculturas de
mulheres gregas com seus lindos potes d’água e animais esculpidos em arbustos
ficassem coberto de uma camada fina de gelo pela manhã, quando levantavam-se
todos, como de costume. Mesmo no verão a
casa era estrondosamente fria. Ninguém nunca suspeitou de causas sobrenaturais,
já que o motivo de toda essa frieza, pensava o marido e a esposa, era o lago
que trazia toda sua umidade durante a noite gélida, e essa umidade,
naturalmente, conservava-se na casa durante todo o dia, uma vez que ela era
imensa e com portas hermeticamente fechadas.
O chefe de polícia, é claro, ficou pasmado com a situação, pois durante
cerca de vinte anos nunca se deparara com um sumiço de alguém naquela pequena
província, e sentia-se amaldiçoado por ser ele o responsável pela investigação,
já que sua vida como chefe da polícia naquela pequena cidade, cargo obtido
através de sua íntima amizade com o prefeito, que o era há 4 eleições seguidas
por falta de concorrentes, tinha sido extremamente calma, fazendo dele, de
fato, um policial acomodado. A última ocorrência alarmante que se lembrava
daqueles últimos anos de serviço foi a de um gato, que por descuido de seu
dono, caíra no lago enquanto passeavam pela trilha floreada que beira sua
margem.
O garoto, contava a mãe desesperadamente à polícia local, ao informar o
sumiço de seu filho, desaparecera como que por encanto, bruxaria. A senhora Aleksandrova,
russa de nascença, era sua principal suspeita, já que a observara tantas vezes
rondando sua casa durante as madrugadas de inverno, sem qualquer motivo
aparente senão a ficar olhando para dentro das janelas buscando alguma
compreensão de algo que a família, até então, desconhecia.
A verdade era a que o garoto jamais quisera mudar-se para aquela casa.
Seu quarto cheirava a mofo e as sombras que movimentavam-se na parede durante a
noite, efeito causado pelas velas espalhadas pelo seu quarto, causavam-lhe arrepios
de medo. Parecia, contava ele a seu pai, que alguém o observava através das
sombras dançantes na parede em frente a sua cama e, por esse motivo, ele sempre
deixava a porta um tanto aberta para que, se precisasse sair correndo para cama
de seus pais, não perder tempo abrindo-a. O pai do menino, como sempre,
apaziguava a situação dizendo que naquela casa não havia ninguém além dele
próprio, o garoto e sua mãe. Mas sabia o garoto, há cerca de três dias, que seu
pai estivera errado. Todavia, por medo de sua reação, não criara coragem ainda
para dizer-lhe que algo de estranho havia no corredor que sucede ao seu quarto.
Certa noite, depois que isso já havia acontecido três vezes durante a
semana, o garoto ficara a observar o vão da porta aberta de seu quarto. Não
estava com sono naquela noite, pois o medo e a dureza de sua carne causada por
ele não o deixavam senti-lo.. Escolhera aquele quarto por ser o melhor de todos
os piores que na casa haviam. O único inconveniente era que era longe demais da
sala e do quarto de seus pais e ficava no andar superior, no qual, para chegar a
ele, era necessário atravessar um grande corredor vazio com seus papéis de
parede floridos todos descascados pelo efeito do tempo, com três janelas
grandes espalhadas pela parede. A luz do luar dava ao corredor um aspecto
horripilante e sair para ir ao banheiro depois das oito era, pensava com toda
sua inocência, sinônimo de suicídio. Estava ele, então, na noite do dia 9 de
setembro, data de seu sumiço, a observar incansavelmente a fresta da porta, com
o suor de sua tensão escorrendo pela face. Sabia que não tardaria para ela
aparecer. No momento em que fechou os olhos, pôde ouvir, no corredor, o som
abafado do assoalho imundo que fazia “toc, toc, toc”, fazendo-o abri-los
rapidamente e estremecer, ali mesmo, na cama.
Das segunda vez que ouvira esse mesmo som, tocados três vezes
repetidamente, com aproximadamente um segundo de intervalo entre cada batida,
sentira uma imensa curiosidade em saber o que o estava causando. Talvez baratas
no assoalho, ratos roedores ou coisa do tipo, mas estranho era o fato de que os
sons apareciam logo que se deitava. Essa resposta, criada para convencê-lo de
que não havia nada anormal acontecendo na velha casa, na verdade, não convencia
nem o menor fio de cabelo que havia em sua pequena cabeça. Lembrou-se naquele
momento, ainda da segunda vez que ouvira esse som, que saiu de sua cama tão
lentamente em direção a porta, com suas meias azuladas, a espreitar mais de perto
sobre a fresta da porta a fim de averiguar se ali havia alguém, pois somente
com a certeza de que estava tudo bem é que conseguiria dormir tranquilamente, e
pôs-se de joelhos agachado atrás dela, com seus olhos arregalados para o fim do
corredor tão distante. Pôde, por um instante, observar a silhueta do que
parecia-lhe ser uma velha de cabelos encaracolados, que escondeu a cabeça atrás
do corredor no momento em que o garoto a viu. Estremeceu ainda mais na cama ao
lembrar-se desse acontecido. Sabia que ela já estava ali, parada no corredor, e
não sabia nem mesmo o porquê estava sendo perturbado, já que fora sempre um bom
garoto com as velhinhas do bairro em que morava anteriormente. O medo percorria
sua fria carne, suas mãos se encontravam molhadas pelo suor e sua boca seca,
seca como o deserto.
“Toc, toc, toc”, ouviu, ainda mais uma vez. A velha está ali, pensou
ele, teve certeza naquele momento de que não estivera sozinho um segundo sequer
desde que chegou naquela horrenda casa. Sabia, agora, que as sombras da vela em
sua parede suja, o lustre balançando mesmo sem corrente alguma de ar
percorrendo seu quarto, o vento zumbindo durante toda a noite mesmo estando as
janelas totalmente fechadas, a luz do luar no corredor fazendo-o tão
acinzentado que parecia a cena de um sonho qualquer, ilusão ou efeito de magia,
sabia, mais do que nunca, que não estava enganado. Alguém o estivera observando
através das sombras, luzes, janelas e parede.
Pegou sua coberta cor marfim, na noite de seu desaparecimento, pois sabia
que, mesmo sendo simples pano, quando coberto por ele criava-se uma camada de
segurança que nem mesmo a velha poderia ultrapassá-lo. Nem mesmo o mais forte
espectro poderia apresentar perigo algum quando uma criança, como ele fazia
naquele momento, enrolava-se em seu cobertor preferido, companheiro de tantas e
tantas noites. Sentiu-se imensamente seguro e dirigiu-se para a fresta da porta
que, como todas as noites, conservava-a ligeiramente aberta.
Observou as janelas, o fim do corredor e o velho papel de parede ainda
todo sujo. “A luz do luar” pensou ele “jamais voltaria a ser bela um dia”,
sendo agora tão aterrorizante ao entrar pelas enormes janelas e fazer iluminar
o corredor.
Não ouviu absolutamente nada,
nenhum ruído, nenhuma sombra mexera-se desde que começara a observar. Levantou-se
e virou-se de costas para voltar à cama sentindo alívio imenso por sentir-se,
mesmo que provisoriamente, sozinho. Em seu primeiro passo em direção à cama,
“Toc, toc, toc”, ouviu. Voltou-se rapidamente para a porta e observou,
novamente, a velha com sua bengala a esconder-se para trás da parede do
corredor. Esconder-se justamente quando ele virava-se para vê-la dava-lhe
calafrios. Sentiu vontade imensa de chorar, de dizer a seus pais que estava
infeliz com aquele maldita casa, que deveriam voltar para sua antiga cidade,
seu antigo quarto e, mais importante que tudo, seus antigos amigos. Apertou-se
fielmente em seu cobertor, era possível ver somente o nariz e os olhos do
garoto, olhos arregalados de medo, pupilas dilatadas, suor escorrendo por sua
testa branca como neve. A velha colocara a cabeça no corredor e tirara rapidamente,
fazendo com que ele saltasse para trás e caísse de bunda no assoalho, tomado
pelo terror, soltando um abafado grito de criança ao segurar o choro contido.
Fechou os olhos e também a porta, mas permaneceu ali, parado. “Toc, toc, toc”, ouviu novamente, no fim do
corredor. “Toc, toc toc”, ainda mais uma vez e estranhara quando percebeu que o
som tonara-se mais alto e mais perto num intervalo de tempo muito curto.
Pôs-se a rezar como nunca antes o havia feito. Suas mãos de criança,
juntas em frente ao rosto, tremiam desvairadamente e o suor que brotava de sua
pele agora descia por seu rosto e pingavam no assoalho, caindo pelo seu queixo.
Abriu novamente a porta na esperança de que sua prece surtira algum
efeito e, para sua felicidade, não encontrou ninguém mas, por precaução,
permanecei ali, frisado, a observar se a assombração daquela velha apareceria
novamente para lhe atormentar. Um minuto se passou, e não viu nem ouviu nada.
Nenhum ruído. “Obrigado” agradecera o garoto pelo efeito de sua prece, no
momento em que percebeu que ela desaparecera, tal era o alívio daquele momento
que sentira seus ombros relaxarem. Respirou fundo e abriu ainda mais a porta.
Observou novamente as janelas, a extensão do corredor e ainda agora o teto, que
não havia prestado atenção antes, pois era muito alto e ele tão pequeno, mas
não havia nada fora do comum. Nenhuma sombra alheia. Nenhuma sensação de estar
sendo observado. Nenhum ruído no assoalho.
Conservara-se durante três ou quatro minutos observando atentamente para
o corredor a espreitar o silêncio que tanto gostava que não pode perceber a
tempo que seu cobertor era cada vez mais puxado para trás, pela ponta, e quando
tomou conta de que ela estivera ali o tempo todo “Toc, toc, toc”, ouviu, bem
atrás de si.
A família nunca conseguira provar a culpabilidade da senhora Aleksandrova,
já que não havia provas algumas sobre seu suposto crime de sequestro que tanto
a família Dardeau acreditava, uma vez que era essa a única razão racional que
eles encontraram. As portas estavam, no dia do sumiço do garoto, tão
hermeticamente fechadas e intactas tal como haviam deixado no dia anterior,
antes de deitarem-se para dormir. A história, em pouco tempo, tornou-se
conhecida por todo estado, atraindo visitantes de várias outras partes do país
para aquela velha casa após o Sr. e a Sra. Dardeau terem se mudado logo que
abandonaram o caso do sumiço pela ineficácia das investigações policiais para
alguma outra cidade que ninguém soubera dizer onde se localizava.
O caso, mesmo tendo passado quarenta anos, ainda continua um mistério.
Há quem diga que são os próprios pais os culpados pelo sumiço do filho, mas,
sendo pura opinião popular, causada pelo desconhecimento da índole daquela
família que viveria ali, isolada, a falta de provas fez com que esta convicção
fosse logo descartada.
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